terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Diário de Rorschach

12 de outubro de 1985

Carcaça de um cão morto no beco hoje de manhã com marcas de pneu no ventre rasgado. A cidade tem medo de mim. Eu vi sua verdadeira face. As ruas são sarjetas dilatadas cheias de sangue e, quando os bueiros transbordarem, todos os vermes vão se afogar. A imundice de todo sexo e matanças vai espumar até a cintura e as putas e os políticos vão olhar para cima gritando “salve-nos”… e eu vou olhar para baixo e dizer “não”. Eles tiveram escolha, todos. Podiam ter seguido os passos de homens honrados como meu pai ou o presidente Truman. Homens decentes, que acreditavam no suor do trabalho honesto. Mas seguiram os excrementos de devassos e comunistas sem perceber que a trilha levava a um precipício até ser tarde demais. E não me digam que não tiveram escolha. Agora o mundo todo está na beira do abismo contemplando o inferno e os liberais, intelectuais e sedutores de fala macia… de repente não sabem mais o que dizer.


13 de outubro de 1985

Dormi o dia todo. Acordei às 16:37, com a senhoria reclamando do cheiro. Ela tem cinco filhos de cinco pais diferentes. Deve enganar a previdência social. Logo vai anoitecer. Lá embaixo a cidade grita como um matadouro cheio de crianças retardadas. Nova York. Sexta à noite um comediante morreu em Nova York. Alguém sabe por quê. Lá embaixo… alguém sabe. O crepúsculo fede a fornicação e más consciências. Acho que vou me exercitar.

Primeira visita da noite infrutífera. Ninguém sabia de nada. Sinto-me deprimido. A cidade está morrendo de hidrofobia. Será que só consigo limpar a baba da sua boca? Jamais se desesperar. Jamais se render. Deixo as baratas humanas discutindo heroína e pornografia infantil. Tenho assuntos a tratar com outra classe de pessoas.

20:30. Encontrar Veidt me deixou um gosto ruim na boca. Ele é mimado e decadente. Traiu até mesmo suas próprias hipocrisias liberais. Talvez homossexual? Devo me lembrar de investigar mais. Dreiberg não fica atrás. Um fracassado lamuriando-se no porão. Por que restam tão poucos de nós na ativa e sem desvios de personalidade? O primeiro Coruja é dono de uma oficina. A primeira Espectral é uma puta velha e inchada morrendo num asilo na Califórnia. Capitão Metrópolis foi decapitado num acidente de carro em 1974. O Mariposa está num hospício no Maine. Silhouette aposentou-se em desgraça. Foi morta seis semanas depois por alguém querendo vingança. Dollar Bill foi baleado. Justiceiro Encapuzado sumiu em 55. O Comediante está morto. Só restam dois nomes na minha lista. Ambos moram no Centro Rockefeller de Pesquisas Militares. Eu vou até eles. Vou avisar o homem indestrutível que alguém planeja matá-lo.

23:30. Sexta à noite um comediante morreu em Nova York. Jogado pela janela. Quando atingiu a calçada, a cabeça dele entrou no estômago. Ninguém liga. Ninguém além de mim. Será que eles estão certos? Logo vai haver guerra. Milhões vão queimar. Milhões vão perecer de doença e miséria. Por que se importar com uma morte? Porque existe o bem e o mal, e o mal tem de ser punido. Mesmo à beira do fim, isso não vai mudar. Mas muitos merecem punição… e há tão pouco tempo.

16 de outubro de 1985.

Rua 42: seios nus se esparramam de todos os outdoors, de todos os cartazes, sujando a calçada. Me ofereceram amor sueco e amor francês… mas não amor americano. Amor americano; como Coca em garrafas de vidro verde…eles não fazem mais. Pensei na história do Moloch a caminho do cemitério. Pode ser mentira. Parte de uma vingança planejada durante uma década atrás das grades. Mas, se for verdade, o que significa? Referência intrigante a uma ilha. Também ao Dr. Manhattan. Será que ele corre perigo? Tantas perguntas. Tudo bem. Respostas em breve. Nada é insolúvel. Existe esperança. Enquanto houver vida. No cemitério, cruzes brancas se enfileram, marcas de giz numa lousa gigante. Faço última visita em silêncio, sem alarde. Edward Morgan Blake. Nascido em 1924. Comediante por 45 anos. Falecido em 1985, enterrado na chuva. É o que acontece conosco? Uma vida de conflitos sem tempo para amigos… e no fim só nossos inimigos deixam rosas. Vidas violentas terminando violentamente. Dollar Bill, Silhouette, Capitão Metrópolis… nós nunca morremos na cama. Não é permitido. Algo da nossa personalidade, talvez? Algum impulso animal para lutar e se debater, fazendo de nós o que somos? Não é importante. Fazemos o que deve ser feito. Outros enterram a cabeça entre as tetas inchadas da indulgência e da gratificação, leitões procurando abrigo debaixo de uma porca… e o futuro se avista como um trem expresso. Blake entendia. Tratava tudo como piada, mas entendia. Ele viu as rachas na sociedade. Viu os homenzinhos de máscara tentando remendar tudo… Ele viu a verdadeira face do século 20 e escolheu se tornar um reflexo, uma paródia desses tempos. Ninguém mais viu a piada. Por isso a sua solidão. Ouvi uma piada uma vez: Homem vai ao médico. Diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. Médico diz: “Tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade. Assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.” Homem se desfaz em lágrimas. E diz: “Mas, doutor… eu sou o Pagliacci.” Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Desce o pano.

21 de outubro de 1985.

Saí da casa de Jacobi às 2:35. Ele não sabe nada sobre a tentativa de desacreditar Dr. Manhattan. Foi apenas usado. Por quem? Russos parecem a escolha óbvia: Manhattan e Comediante eram figuras militares importantes. Mas Comediante falou de uma ilha, artistas e escritores vivendo nela. Não se encaixa. Não consigo me concentrar. Cansado demais. Sem dormir desde sábado. Andei pra casa passando por latas de lixo cheias de rumores de guerra, analisando fatos; corpos; motivos… aguardando um lampejo de clareza no mar de sangue.

Acordei às onze com gritos lá fora. Perturbado por ter adormecido sem remover a pele da cabeça. Mais cansado do que imaginava. Devo ter mais cuidado. Do outro lado da rua, garotos com spray desfiguravam prédio abandonado. Memorizei feições e me preparei para o trabalho. Primeiro tirei meu rosto, dobrei e guardei no casaco. Sem face, ninguém me conhece. Ninguém sabe quem sou. Ao sair do quarto, encontrei a senhoria. Queixas de sempre: higiene e aluguel. Havia marcas de chupada no pescoço gordo. Recentes. Ela me lembra minha mãe. Na rua, inspecionei o prédio desfigurado: silhueta na porta, homem e mulher, possivelmente em preliminares sexuais. Não gostei. Faz porta parecer assombrada. Na 40a com a 7a, vi Dreiberg e Juspeczyk saindo do Gunga Diner. Um caso, talvez? Será que Juspeczyk arquitetou exílio de Manhattan a fim de abrir caminho para Dreiberg? Ela também odiava o Comediante. Devo investigar. Entrando no Diner, pedi café e me sentei olhando minha caixa de correio do outro lado da rua. Transeuntes fizeram vários depósitos: papel de bala, jornais, um par de tênis estrangulado pelos próprios cadarços, línguas pendendo horrivelmente. Esta cidade é um animal feroz e complicado. Para entendê-la eu leio seus dejetos, seus aromas, o movimento de seus parasitas… Sentei olhando o lixo e Nova York abriu seu coração.

Alguém tentou matar Veidt. Prova a teoria do “matador de mascarados”. O assassino fecha o cerco. Verifiquei mensagens. Bilhete de Moloch. Relacionado talvez? Depois fui recolher rosto no beco. Em frente ao Utopia, polícia prendeu um viciado em KT-285. Estava gritando alguma coisa sobre o presidente Nixon. Sobre bombas. Será que todos enlouqueceram menos eu? Sobre a 40a, um elefante flutuava. Acima dele, satélites espiões invisíveis. Se eles estreitarem seus olhos de vidro, todos vamos morrer. Mundo implacável. Só há uma resposta sadia para ele. O beco estava frio e deserto. Minhas coisas estavam onde eu havia deixado. Esperando por mim. Colocando-as, abandonei o disfarce e voltei a ser eu mesmo, livre do medo, da fraqueza ou do desejo. Meu casaco, meus sapatos, minhas luvas imaculadas. Meu rosto. Tenho três horas antes de encontrar Moloch. Mais adiante, ouvi grito de mulher, primeira nota balbuciante do coro noturno da cidade. Me aproximei. Uma tentativa de estupro/assalto/ambos. Pigarreei. O homem se virou e havia algo gratificante no seu olhar. Às vezes à noite é generosa comigo.

1 de novembro de 1985.

Último registro? Saímos do escritório de Veidt quase meia-noite. Dreiberg, convencido de que Veidt está por trás de tudo, fala sério em visitar a Antártica. A nave dele aparentemente tem condições, mas e nós? Veidt. Não imagino oponente mais perigoso. Se a jornada for possível, rastreá-lo ao seu covil é a única opção. Mas me sinto intranqüilo. Território desconhecido… Ele poderia nos matar na neve. Ninguém jamais saberia… Primeira noite de novembro. Estou com frio. Escritórios abaixo, lajes marcando diariamente milhares de túmulos. Dentro, nos mostradores dos relógios, tão visados quanto celebridades, os ponteiros iniciam as voltas finais. O fim vem a galope, favorecendo a espora, poupando as rédeas. Acho que vamos tombar logo. Veidt é mais rápido do que Dreiberg. Talvez mais do que eu. Voltar da missão parece improvável. Última anotação. Vou mandar o diário aos únicos em quem confio. Digo a Dreiberg que preciso checar minha caixa postal. Ele acredita. Quer eu esteja vivo ou morto, se você estiver lendo isso agora vai saber da verdade: seja qual for a natureza desta conspiração, Adrian Veidt é o responsável. Esforcei-me para ser compreensível. Acredito que tracei um quadro aterrador. Apreciso seu apoio recente e espero que o mundo sobreviva até isto chegar às suas mãos, mas tanques estão em Berlim oriental e o fim está próximo. Quanto a mim, de nada me arrependo. Vivi a vida sem concessões… e agora avanço rumo às sombras sem me queixar. RORSCHACH, 1 de novembro de 1985.

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