terça-feira, 10 de abril de 2012

Abraçar a Áspera Realidade


Adeus

Já é o outono! — Mas por que ter saudades de um eterno sol, se estamos empenhados na descoberta da claridade divina, — longe das criaturas que morrem sobre as estações?
Outono. Nossa barca vogante nas brumas imóveis ruma para o porto da miséria, a cidade enorme do céu manchada de fogo e lama. Ah! os andrajos apodrecidos, o pão ensopado de chuva, a embriaguez, os mil amores que me crucificaram! Ela não deixará nunca de existir, essa vampiro que é a rainha de milhões de almas e de corpos mortos e que serão julgados! Revejo-me, a pele roída pela lama e pela peste, os cabelos e as axilas cheios de vermes, e ainda por cima um gordo verme no coração, estendido entre os desconhecidos sem idade, sem sentimento... Eu poderia ter morrido lá... A terrível evocação! Execro a miséria.
E temo o inverno porque é a estação do conforto!
— Algumas vezes vejo, no céu, praias infinitas cobertas de brancas nações em júbilo. Um grande navio de ouro, acima de mim, agita as suas bandeiras multicores ao sabor das brisas matinais. Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Pensei ter adquirido poderes sobrenaturais. Muito bem! devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Uma bela glória de artista e de narrador destruída!
Eu! eu que me considerei mago ou anjo, isento de qualquer moral, voltei ao chão, com um dever a cumprir e obrigado a abraçar a áspera realidade! Camponês!
Será que estou enganado? a caridade seria, para mim, a irmã da morte?
Enfim, pedirei perdão por me ter alimentado de mentira. E vamos embora.
Nenhuma mão amiga, porém! e onde encontrar o socorro?

***


Sim, a hora nova é pelo menos muito severa.
Pois posso dizer que conquistei a vitória: o ranger de dentes, os silvos de fogo, os suspiros pestilentos se abrandam. Desfazem-se todas as lembranças imundas. As últimas queixas se afastam de mim, — inveja dos mendigos, dos salteadores, dos amigos da morte, de todos aqueles que foram passados para trás. — Malditos, se eu me vingasse!
Devemos ser totalmente modernos.
Nada de cânticos: não arredar o pé do terreno conquistado. Dura noite! o sangue ressequido fumega no meu rosto, e nada tenho atrás de mim a não ser este horroroso arbusto!... O combate espiritual é tão brutal quanto a batalha entre os homens; mas a visão da justiça é o prazer só de Deus.
Entretanto, é a vigília! Recebamos todos os influxos de vigor e de ternura real. E, ao romper da aurora, armados de uma grande paciência, entraremos nas esplêndidas cidades.
Falava a respeito de uma mão amiga? Já é uma grande vantagem que eu possa rir dos velhos amores ilusórios, e fazer com que se envergonhem esses casais mentirosos, - vi o inferno das mulheres, lá embaixo; - e me será permitido possuir a verdade em uma alma e um corpo.

Arthur Rimbaud

De Uma Temporada no Inferno, tradução de Ledo Ivo.

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